O
professor de educação física Ramon Lima, 43 anos, sonhava em ser atleta,
mas o sonho foi adiado após ser diagnosticado com uma doença renal
crônica chamada glomeruloesclerose segmentar e focal (GESF), em 2008.
Depois de 10 anos fazendo tratamento com corticoides e cuidando da
alimentação, ele precisou entrar na lista de espera para receber um novo
rim, onde ficou por dois anos enquanto realizava diálise peritoneal.
Agora, quatro anos depois do transplante, ele se tornou atleta transplantado e participa de competições nacionais e internacionais.
“Desde pequeno sonhava em
ser atleta e nunca tive a oportunidade. O transplante pode me
proporcionar isso. Hoje sou um atleta transplantado e uso o esporte como
ferramenta para divulgar a doação de órgãos em todos os espaços em que
estou inserido”, conta Lima à CNN.
Sua
história é mais uma das que são impactadas pela doação de órgãos. A
prática, que pode ser feita tanto por doadores vivos ou por falecidos
(com a autorização da família), é responsável por salvar milhares de
vidas anualmente. Só em 2023, foram realizados quase 26 mil transplantes
de órgãos, tecidos e medula óssea, segundo a Associação Brasileira de
Transplante de Órgãos (ABTO). Entre janeiro e março de 2024, ocorreram
cerca de 6,7 mil cirurgias, sendo mais de 1,3 mil relacionadas ao rim.
Apesar
disso, o número de famílias que recusaram doação de órgãos de parentes
mortos cresceu em 2023, segundo a ABTO. Em 2019, entre 42% e 44% dos
parentes negavam a doação de órgãos de parentes mortos. No primeiro
semestre de 2023, o número chegou a 49%. Porém, a decisão pode
transformar vidas, como a de Ramon, que recebeu um rim de um doador
falecido.
“Foi a decisão da família doadora, em um momento muito difícil, que possibilitou que o meu marido continuasse acompanhando o crescimento das minhas filhas e, mais do que isso, ter qualidade de vida”, declara Inês Silva, 40, esposa de Lima, à CNN. “Gratidão eterna por essa família e por várias outras que dizem sim. E acabam por permitir que o seu parente salve vidas e modifique vidas para melhor. Não sei qual foi a história da doadora do meu marido, mas para nós, será sempre lembrada como um anjo”, afirma.
A
cantora Michele Mabelle, 41 anos, esteve do outro lado. Após a perda
repentina de seu pai por um acidente vascular cerebral (AVC),
transformou o luto em um ato de amor ao dizer sim à doação de órgãos.
“Enfrentar
a morte é um desafio imenso, mas, após conversar com a equipe de
captação de órgãos do hospital onde meu pai estava internado, passei a
ver a situação com um novo olhar. Como expressa a música que compusemos,
a doação é uma vida que renasce e, em cada coração que bate, o legado
do meu pai continua vivo”, compartilha Michele, que é voluntária do
Hospital Universitário Cajuru, localizado em Curitiba, no Paraná.
Já
a médica pediatra Maria Márcia Nasser, 66 anos, decidiu doar uma parte
de si a quem ama. Seu marido possui uma doença renal hereditária e
progressiva chamada rim policístico e precisou receber um novo órgão.
“Em família, nós e nossos filhos tomamos a decisão de que, se fosse
possível, faríamos o transplante antes da necessidade de diálise. Dessa
forma, iniciamos meus exames para determinarmos minha compatibilidade”,
afirma.
O
resultado foi positivo: ela se tornou doadora do rim que, hoje, está em
seu marido. “Nossas vidas, bem como de nossos filhos e netos, se
tornaram infinitamente melhores. Passamos a poder desfrutar de viagens,
passeios em família, os quais estavam bastante limitados pelas condições
clínicas de meu marido”, relata à CNN.
Como funciona a doação de órgãos no Brasil?
Segundo o Ministério da Saúde, o Brasil é referência mundial na área de transplantes e possui o maior sistema público de transplantes. Em números absolutos, o país fica atrás apenas dos Estados Unidos como maior transplantador do mundo.
No
Brasil, a doação de órgãos e tecidos de pessoas falecidas só é
realizada após a autorização familiar. Com isso, mesmo que a pessoa
tenha dito em vida que seu desejo era se tornar um doador, se possível,
apenas os familiares podem realizar a decisão final. Se a família não
autorizar, os órgãos não serão retirados.
Além
do consentimento, para que um falecido seja doador, é necessário ser
identificada a morte encefálica (vítimas de traumatismo craniano, AVC ou
anóxia), ou a morte causada por parada cardiorrespiratória. Depois
disso, a família é entrevistada por uma equipe de profissionais de saúde
para informar sobre o processo de doação e transplantes e solicitar o
consentimento para a doação.
O
doador falecido pode doar órgãos como: rins, coração, pulmão, pâncreas,
fígado e intestino; e tecidos: córneas, válvulas, ossos, músculos,
tendões, pele, cartilagem, medula óssea, sangue do cordão umbilical,
veias e artérias.
A
doação também pode ser feita por um doador vivo, que deve ser maior de
idade e juridicamente capaz, saudável e consentir com a doação, desde
que não prejudique a própria saúde. Além disso, pela legislação
brasileira, parentes de até quatro graus e cônjuges podem ser doadores. A
doação de órgãos de pessoas vivas que não são parentes do receptor é
feita mediante autorização judicial.
Um
doador vivo pode doar um dos rins, parte do fígado, parte da medula ou
parte dos pulmões, a compatibilidade sanguínea é necessária em todos os
casos. Para doar órgão em vida, o médico deverá avaliar a história
clínica do doador e as doenças prévias.
Quais são os critérios avaliados para um órgão ser doado?
De acordo com Alexandre Bignelli, médico nefrologista e coordenador do Serviço de Transplante Renal do Hospital Universitário Cajuru, o processo de avaliação para uma doação de órgão de pessoas vivas envolve várias etapas, começando pela verificação da tipagem sanguínea, que deve ser compatível a do receptor.
“Isso
acontece de forma semelhante à doação de sangue, com doadores O sendo
universais e receptores AB recebendo de todos os tipos”, explica à CNN.
“O próximo passo é verificar a compatibilidade HLA, que pode influenciar
a escolha de medicamentos, embora o transplante seja possível mesmo com
diferenças nesse sistema, desde que o sistema ABO seja compatível.”
Após
confirmada a compatibilidade e elegibilidade do doador, segundo a
legislação, são realizados diversos exames para avaliar a saúde geral e
se o doador está apto à doação. Embora a legislação permita doadores
acima de 18 anos, a prática clínica tende a preferir doadores acima de
30 anos, considerando a expectativa de vida e o estado de saúde no
momento da doação, de acordo com o especialista.
No
caso de um doador falecido, após a autorização familiar, ele é
submetido à cirurgia e os órgãos são distribuídos para pacientes em
lista de espera, controlada pelas Centrais Estaduais de Transplante,
segundo Bignelli. “A prioridade de distribuição é dada por critérios de
urgência, como para pacientes graves com problemas hepáticos ou
cardíacos, enquanto os rins são alocados com base na compatibilidade ou
priorização, como crianças e pacientes sem mais acesso à hemodiálise”,
afirma.
Comunicação entre médico, familiares e pacientes é essencial
“O esclarecimento sobre a possibilidade de se tornar um doador é fundamental. Isso porque em vida temos maior probabilidade de precisar de um órgão do que de sermos potenciais doadores”, afirma Bignelli. O médico pode entrar nesse cenário.
“Cabe
aos profissionais envolvidos no processo de seleção informar as
famílias sobre o diagnóstico de morte cerebral e a importância da
autorização familiar para a doação, que pode beneficiar múltiplos
receptores na lista de espera“, esclarece o especialista.
Além
disso, a comunicação também deve ocorrer dentro da família. Uma pessoa
que esteja interessada em se tornar doador, seja em vida ou após a
morte, deve comunicar sua vontade, mesmo que a decisão final pertença à
família. “As famílias devem pensar que órgãos doados podem trazer nova
vida às famílias que os recebem! Eu mesma estou inscrita para doação das
minhas córneas. Meus familiares estão cientes disso”, reflete Nasser.
Já
para as crianças, também é importante esclarecer o que existe por trás
da doação e transplante de órgãos. É nesse sentido que Inês Silva
decidiu escrever um livro infantil sobre a experiência de seu marido ao
receber um novo rim: “Papai tem três rins!”
“Quando
o Ramon entrou para a lista de espera por um transplante e começou a
fazer a diálise peritoneal, tínhamos que conversar com as nossas filhas e
contar o que estava acontecendo e o que iria acontecer. Temos duas
filhas, na época com 6 e 3 anos”, conta. “Tivemos dificuldade em achar
materiais sobre o tema transplante, doação de órgãos e diálise, voltado
para crianças. Foi ali que começou a surgir a ideia do livro.”