Na caixa
de isopor que Samuel Silva carregava havia mais do que trufas de
chocolate para vender na porta da igreja. A mãe dele preparava o doce
durante a noite.
Dez anos depois, Samuel entende que a "música de louvor" o transformou. Tanto que também aprendeu o violão.
Na
última semana, ele classificou como “reconhecimento” – ideia que não é
unanimidade entre os evangélicos – a lei que instituiu o Dia da Música
Gospel no Brasil, em 9 de junho: “é bom ter um dia em homenagem. Essa
música me traz paz”.
Samuel
espera ansiosamente cada domingo para tocar e cantar também como alívio
depois de longas jornadas como operador de loja em um supermercado no
Recife.
“No meu
tempinho livre, eu reúno o pessoal da igreja para a gente ensaiar. A
música tem um significado muito grande para a gente”.
Hoje,
ele ensina o gênero musical a crianças e adolescentes, assim como um
dia aprendeu. “Quando os mais novos nos veem com instrumentos, perguntam
como que faz para tocar.”
Visibilidade
Segundo explica o professor de sociologia Paulo Gracino de Souza Junior, pesquisador da Universidade de Brasília (UnB), a música ocupa um lugar central no pertencimento do evangélico: “a música chamada gospel é ouvida em igrejas e doutrinas diferentes. É bastante importante não só para o segmento evangélico”.
O professor entende que o
Dia da Música Gospel, sancionado pelo presidente Lula na última
terça-feira (15), é uma forma de contrabalancear a visibilidade dada
pelo Estado às representações culturais que foram majoritariamente
ligadas à crença católica.
“O
segmento evangélico tem uma máquina midiática própria que consegue, por
exemplo, construir visibilidade pública. A música gospel, por exemplo,
tem chegado além do público evangélico.”
Ele
exemplifica que artistas e atletas expõem canções gospel não
necessariamente ligadas à crença pessoal e esse tipo de música já
adentrou todos os espaços. “Você entra no supermercado, por exemplo, na
periferia do Rio de Janeiro, e escuta música gospel tocando no rádio”.
Cenário de desassistência
O pesquisador contextualiza que as igrejas exercem um papel importante na periferia, em espaços de menos lazer, e são centrais para a discussão de problemas da comunidade, de problemas pessoais e também de aprendizagem de uma profissão e de uma prática cultural nova.
Outra relação que o pesquisador estabelece é que a música na igreja representa o local de aprendizado de instrumentos. “Nos Estados Unidos, por exemplo, também existe o fenômeno de pessoas que passaram pela igreja, pelos corais e acabaram depois seguindo carreira artística”.
O músico brasiliense Rivanilson Alves, o Rivas, de 55 anos, é compositor de hip hop e se converteu à igreja evangélica (Sal da Terra) no início dos anos 2000. Ele entende que ter um dia da música gospel é importante, mas chama a atenção para o fato de que há diferentes ramificações do estilo e, por isso, deve ser visto de forma ampla.
“Hoje a gente já tem
vários estilos. Todos os estilos de músicas negras, o gospel já
alcançou, como o pagode, o samba. São músicas que trazem a realidade da
periferia. Quando a gente fala da música gospel, pensamos em algo mais
espiritual”.
Ele
vive na região do Sol Nascente, no Distrito Federal e toca na Bethel
Band. “Traz mais funk e soul”. Foi a música e as suas reflexões que o
levaram para a igreja. Ele garante que, dentro da igreja, teve apoio e
não sentiu olhos enviesados para o hip hop gospel. “A gente mantém essa
linha mais black music e tratando de periferia”.
"Apelo comercial"
O carioca Isaias Campos, de 59 anos, da Igreja do Senhor, no bairro de Bento Ribeiro, na zona norte, aprendeu a tocar o pandeiro na igreja na adolescência e afirma que as igrejas devem vencer o preconceito contra estilos musicais periféricos.
“Eu
descobri o cantar. A minha voz tem uma tonalidade raríssima, que é o
baixo profundo”. Ele considera que a denominação gospel tem apelo
comercial e as gravadoras descobriram esse filão promissor.
O
músico evangélico avalia que a data nacional pode ser utilizada pelas
empresas para finalidade comercial. “Eu não diferencio músicas cristãs
de profanas, mas se são boas ou ruins. São da música popular
brasileira”.
Da mesma forma, também do Rio de Janeiro, o professor evangélico Samuel Gomes de Souza, de 59 anos, das áreas de geografia e sociologia, avalia que o Dia da Música Gospel tem características de um ato político de conciliação ou aproximação com as lideranças evangélicas. “Eu não gosto do termo gospel porque ele não tem nada com a nossa realidade”.